Após ler o texto Tecnopolítica: um contraponto ao primitivismo, que me foi entregue gentilmente pelo coletivo Saravá durante a palestra de John Zerzan em São Paulo, escrevi os seguintes comentários:
Creio que o conceito de primitivismo sendo criticado no texto não é de forma alguma o conceito que os primitivistas adotam. Eu concordo plenamente com a crítica. Se o primitivismo fosse algo assim, ele realmente seria inviável. O autor do texto imaginou que o primitivismo nega a tecnologia e a cultura. Por um lado, ele confunde a crítica da tecnologia com uma negação completa da técnica. Por outro, o primitivismo jamais negou ou criticou a cultura humana, mas sim um tipo bem específico de cultura, que é a cultura civilizada.
A cultura civilizada não representa a totalidade da cultura humana, porque o conceito de civilização usado pelo primitivismo não é o mesmo conceito que é sinônimo de cultura humana. É uma cultura recente, que se expandiu com o uso da violência. Não acreditamos que esta cultura seja necessária, e cremos que ela seja prejudicial. No entanto, não queremos nos livrar dela ostensivamente. Queremos uma mudança de dentro para fora. Acreditamos ser necessário expor a dominação desta cultura para facilitar o processo de autocrítica, pois a civilização usa a mídia e a educação formal, por exemplo, para inibir qualquer crítica profunda a ela. Dentro da civilização, só são aceitas críticas que não são perigosas, críticas que mudarão apenas o sistema de governo, por exemplo, mas não o governo em si. É para uma mudança mais radical que estamos apontando, não para o comodismo.
É humanamente impossível viver sem cultura, seres humanos sempre tiveram cultura e portanto não é possível se posicionar contra a cultura. O que criticamos é a cultura de acúmulo e expansão, que chamamos de civilização. Não é verdade que nada possa ser feito contra ela, não é verdade que se opor à civilização diminui nossa capacidade de atuação. Pelo contrário, do nosso ponto de vista ele amplia nossa atuação para um novo espectro. É também humanamente impossível viver sem técnica, porém nosso entendimento de tecnologia vai além da técnica. A tecnologia civilizada carrega em si os fundamentos insustentáveis da civilização. Não significa que esta tecnologia não pode ser usada para sabotagem. Ela pode, e é usada. Não significa que vamos deixar de agir apenas porque utilizamos tecnologia ou cultura civilizada como meios. Pelo contrário, acreditamos na necessidade desses meios de mudança. Só não acreditamos que o desenvolvimento futuro nos levará a mais tecnologia e mais cultura civilizada, pelo menos não sem um alto custo para o planeta.
No entanto, não censuramos aqueles que querem usar tecnologia ou coisas que só são possíveis na civilização, mesmo porque por enquanto só podemos usar isso mesmo. Mas não se pode deixar a crítica de lado. Deve se ter em mente as conseqüências em longo prazo do uso dessas coisas. A maioria de nós usa computador.
Portanto não vejo como as idéias primitivistas levariam a um abandono das lutas sociais. O primitivismo não é doutrina nem abarca dentro dele estratégias de ação. Algumas pessoas adotam um conjunto de estratégias para diminuir sua dependência da economia, incluindo primitivistas. Sabemos que não é suficiente fazer tais ações se isso se tornar apenas estilo de vida.
O primitivismo também de forma alguma incentiva pessoas a se isolarem em comunidades. Também concordamos com esta crítica. O que dizemos é que a civilização não é o simples aparato físico que chamamos de cidades e suas colônias circundantes. Civilização é um modo de pensar, e por isso não é preciso sair da cidade para entender o primitivismo e para se ter uma crítica profunda à civilização. Eu pessoalmente penso que a construção de comunidades será inútil se a cultura continuar expansiva, pois realmente nenhuma comunidade ficaria segura, como não estão seguros agora os indígenas que ainda restam.
Obviamente criticamos algumas das lutas travadas até agora, em especial a luta de classes como proposta pelos esquerdistas. Mas isso de forma alguma significa dizer que trabalhadores nada possam fazer. Pois as vias para a luta não foram esgotadas. Criticar um caminho não é restringir a ação, e sim dar uma nova perspectiva. Ainda que o capitalismo e o socialismo sejam propostas igualmente falsas, isso não significa que não há nada que possamos fazer. Ainda que o movimento trabalhista seja uma armadilha, não somos meros trabalhadores, somos antes seres humanos, e o primitivismo não concede a nenhuma classe o status de revolucionária. Pois queremos a libertação dos seres humanos, enquanto seres humanos.
Não penso que o questionamento primitivista possa ser abandonado facilmente, e tal pensamento é algo que nos acompanha desde o início da civilização. É verdade que não propomos uma utopia, no sentido de um mundo ideal pelo qual lutar. Queremos lutar pelo mundo real, que é destruído enquanto vivemos de idealismos. De fato, vivemos numa "utopia realizada", que é a civilização. Sabemos por fato que ela não pode durar muito, que ela é prejudicial ao ser humano e à natureza, e que todas as tentativas anteriores de se viver numa cultura de crescente dependência tecnológica falharam miseravelmente. Se o que o autor promete é que com nossa civilização será diferente, ele nos compreenderá se duvidarmos, a menos que sejam mostrados argumentos bastante convincentes a favor do crescimento da dependência tecnológica.
Uma experiência é válida ainda que os resultados não sejam os esperados, pelo próprio fato de que sabemos o que não funciona. Isso de forma alguma nos leva para mais longe de uma resolução, mas sim para mais perto. Não podemos descartar esse tipo de informação, a não ser que o autor queira contestar diretamente as críticas primitivistas, o que não foi feito no texto.
Sobre a política, caberia uma definição do termo. No sentido em que nós entendemos a política, ela é tipicamente civilizada. Abrange a ação dos cidadãos, e não dos seres humanos. No entanto, alguns teóricos preferem um sentido de política mais vasto, que abrange o ser humano como um todo, incluindo culturas não civilizadas também. Nossa proposta não é política no primeiro sentido, o que não nos impede de atuar politicamente como pudermos para minimizar danos ou promover a mudança da cultura. Quanto ao segundo sentido, assim como a técnica e a cultura, não nos opomos de forma alguma, nem poderíamos sem estar propondo algo absurdo. Defendemos o ser humano natural em oposição ao ser humano auto-domesticado, porém sabemos que não podemos fugir da domesticação, só podemos deixar de criá-la na medida em que nossa visão de mundo mude, e que procuremos outro sentido para a sociedade, que não a mera produção, acúmulo e expansão.
As práticas de destruição da propriedade, assim como da tecnologia, não estão necessariamente dentro do primitivismo. São conclusões suportadas por indivíduos, ou grupos de indivíduos. Eu pessoalmente não creio que a destruição cause mais dano do que mudar as mentes para que elas parem de construir o que nos destrói.
É um erro acreditar que os primitivistas procurem estar menos inseridos na sociedade. Isso tão pouco é possível, e nenhum bom resultado poderia partir disso. O que queremos é tornar a sociedade menos dependente da civilização, pois identificamos na civilização algo que torna nossa sociedade doente e insustentável. Nossos problemas sociais são conseqüências dessa mudança para um modo de vida civilizado, e não exatamente causas. Atacar os efeitos pode perpetuar a civilização, e isso apenas piora nossa situação. Não é isso que queremos, não queremos uma eterna luta contra a civilização porque ela não pode durar para sempre. Ela é temporária, e queremos viver bem para além dela, como vivemos bem antes dela, ainda que não da mesma forma.
Não queremos um retorno ao passado, queremos sim a liberdade humana daquilo que chamamos de domesticação. Não estamos cansados ou descrentes, de forma alguma, queremos colocar nossa energia para mudanças reais, efetivas. Sabemos que não podemos mudar a cultura tão rapidamente quanto podemos mudar o governo, porém queremos preparar o terreno e criar as condições para essa mudança inevitável.
Não estamos propondo uma fuga da civilização, isso seria como propor expulsar os animais domesticados do nosso modo de vida. Isso não pode ser feito sem que a própria domesticação seja criticada. Estamos propondo esse questionamento, as atitudes são por conta das pessoas. Nem todas as lutas são úteis, e algumas podem ser eternizadas e usadas para perpetuar o sistema. Sabemos disso e queremos evitar essa armadilha, mas não nos opomos automaticamente a qualquer proposta.
De forma bem clara, o primitivismo apresenta uma crítica à civilização que deve ser feita por civilizados, por cada um deles. Há uma tremenda impaciência em tentar ver propostas de ação no primitivismo. Isso é herdado de modos de pensar civilizados, onde toda mudança social não abrange a crítica da estrutura civilizada, mas trabalha sem levar em consideração que a própria civilização possa estar equivocada, por isso se trata apenas de agir, e não de pensar. Enquanto as pessoas não se dispuserem a questionar a civilização em si, não haverá possibilidade de qualquer ação contra a civilização fora do nível pessoal, que é, concordando com vocês, insuficiente. O primitivismo não aponta qualquer mudança pessoal ou de estilo de vida, a apreensão de estratégias por pessoas com uma crítica primitivista se dá por opção delas, por necessidade de fazer algo. Não quer dizer que nada possa ser feito, apenas que nada realmente grande poderá ser feito sem uma crítica mais ampla. Michael Ende escreveu: "Pode-se avançar muito pouco num navio que está indo para a direção errada". Nossa idéia atual é incentivar o ganho de um momentum anti-civilização. Precisamos mudar a direção do navio, ao mesmo tempo precisamos sobreviver enquanto estamos nele. Uma coisa sem a outra será inútil.
A crítica ao simbolismo não é uma crítica ao símbolo em si, e não é uma parte essencial da crítica primitivista. Alguns autores, como Zerzan, apontam que não havia registros de representações simbólicas até bem recentemente na história humana, e que isso poderia ser uma das condições que criam a divisão de trabalho. Eu pessoalmente penso que quando ele fala sobre divisão de trabalho, linguagem, número e tempo, ele não está falando da mera existência dessas coisas, mas da manipulação dessas coisas para proveito de alguns em detrimento da comunidade. É só aí que o nome para tais coisas surge, e é isso que ele define por origem da cultura simbólica. Penso que essas coisas não devem ser abandonadas por princípio, mas apenas se as pessoas quiserem abandoná-las, se elas não tiverem mais uso em nossa sociedade. Penso que numa sociedade igualitária e sustentável essas coisas deixarão naturalmente de ter valor, assim como não tem valor hoje para grupos não-civilizados.
Não há possibilidade alguma de embate direto, meramente físico, contra a civilização, e não é isso que propomos. Propomos antes uma mudança de idéias. O centro da idéia primitivista é que sobrevivemos adequadamente num modo de vida não-civilizado por 99% de nossa história, e que não podemos sobreviver por muito tempo nesta cultura civilizada. Este é o verdadeiro fundamento da crítica primitivista. Criticar as atuações é válido e concordamos com o autor em suas críticas àqueles que querem se excluir de toda e qualquer luta. No entanto precisamos refinar nossa análise e tentar utilizar essa energia para ações mais efetivas, que visem algo fundamental, e que possam criar um dano verdadeiro à civilização. Isto não quer dizer que uma ação inofensiva à civilização seja sempre inútil, pois pode servir para nossa sobrevivência e nos dar condições de fazer algo mais efetivo.
A maioria dos primitivistas concorda que a tecnologia e a ciência não são neutras, e que o que chamamos de tecnologia sempre foi desenvolvido tendo em vista padrões civilizados, o que é bem diferente da técnica. Não haveria o que chamamos de tecnologia fora da civilização, e ainda que uma tecnologia seja limpa, se ela depende da civilização ela não pode ser feita de forma sustentável. O que de forma alguma nos impede de fazer uso dela enquanto não houver opção melhor.
A noção de cultura apresentada parece depender de registro escrito, o que não pode ser encontrado em muitas populações de humanos, o que significaria que nem todos os humanos têm cultura, o que nos parece um absurdo. Cultura pode ser visto como comportamento adquirido numa população. Nada disso exige o que chamamos de cultura simbólica.
Nem toda técnica de obtenção de comida, por exemplo, é, no nosso entender, tecnológica. Nossas técnicas certamente apresentam vantagens por termos um aparelho cognitivo mais plástico, porém o que outras espécies fazem não se distingue da técnica, e por isso não é o que chamamos de tecnologia. Nossa tecnologia exige mais do que técnica, exige domínio exclusivo de técnicas, o que exige uma cultura simbólica.
A capacidade de criar culturas surge como uma característica humana, e exatamente por ser o resultado de uma escolha humana é que a cultura civilizada pode ser questionada.
Quando o autor fala de Tecno-política, em sua definição eu entendo uma mescla de uso de técnicas e de cultura, não necessariamente civilizadas, para criar uma mudança social. Se assim for, nem a tecno-política se opõe ao primitivismo, nem o primitivismo se opõe à tecno-política. Talvez haja no texto uma tendência contra a idéia de equilíbrio dinâmico, restringindo o equilíbrio e a estabilidade ao conjunto das coisas estáticas. Aconselho observar o gráfico da população humana. Ele oscilou por muito tempo, assim como qualquer população viva. No entanto, houve um crescimento desgovernado nos últimos séculos. Houve uma ruptura na história humana, e que tal mudança não é "natural" no sentido comum do termo, mas causada pela civilização.
Concordamos com a mudança da cultura e também com os métodos de sobrevivência menos danosa na civilização. Mas freeganismo, permacultura e outras idéias só nos serão úteis se não perderem de vista a crítica radical à civilização. Precisamos reduzir nossa obediência a este sistema econômico e tecnológico, e é isso que estamos tentando fazer, por mais precárias que sejam nossas tentativas até agora.
Não há retorno ao estado primitivo, nós apontamos para o estado primitivo apenas para lembrar que a civilização não foi sempre o caso na humanidade, e não precisa ser sempre o caso. Do nosso ponto de vista, o modo de vida original não foi abandonado, ele apenas foi modificado, assim como um animal domesticado continua sendo um animal, mas tem suas condições de realização impossibilitadas e inibidas. Se solto, ele retornará ao estado original sem influência do homem. Assim também o homem ainda tem esperança, mas teve suas condições de realização suprimidas, e demonstra sinais de doenças físicas e mentais por conta disso.
Todas as culturas civilizadas que existiram se expandiram e entraram em colapso. O que funcionou para a espécie humana durante a maior parte do tempo não foi a civilização.
Por último, fazer mais com menos pode ser ótimo por si mesmo, mas em relação ao complexo arranjo de relações, incluindo as relações ecológicas (que jamais serão entendidas por completo) podem significar um risco que não vale a pena. É por isso que não tivemos o aumento de dependência tecnológica pela maior parte de nossa história. A evolução das técnicas, assim como a evolução das espécies, é lenta e não tende à complexidade, e sim para a diversidade. Se o objetivo da evolução, por exemplo, fosse o menor gasto, não haveria diversidade e talvez nem sequer evolução, já que o estado inicial já era o de menor gasto. O equilíbrio dinâmico de sistemas abertos, como os sistemas vivos, não os torna aceleradamente mais eficazes, mas sim bem adaptados. Tal adaptação é uma relação equilibrada entre natureza e homem, e deve obedecer à velocidade de resposta da natureza, que é muito lenta. Deve acompanhar a co-evolução do ecossistema como um todo. Qualquer desenvolvimento tecnológico acelerado deve estar ou ignorando o diálogo com o meio, ou então estar sendo guiado por idealizações incompletas, reduções da natureza a modelos mentais humanos. Concluímos que para ter técnicas sustentáveis, elas não podem ser criadas de forma "tecnológica", ou seja, visando apenas o aspecto humano de produtividade e eficiência. Este é o motivo para crermos que tecnologias verdes ou limpas são pura arrogância, ainda que possam ser boas opções se não houver outra opção, mas de forma alguma nos acomodaremos em ter apenas essas opções, que são reguladas pelo mercado e pela lógica da civilização.
Resumindo: O primitivismo não se opõe à técnica e muito menos se opõe à cultura em si. O que ele critica é q civilização, que acreditamos ser muito recente e algo que de forma alguma compreende todo espectro de atuação e pensamento humano. Os argumentos podem certamente ser criticados, mas nenhum deles foi criticado ao longo do texto aqui tratado. Afirmar que a civilização é em si o problema não significa negar e se afastar instantaneamente de tudo que é civilizado, pois tal coisa seria impossível. O que propomos é uma mudança de direção, de visão de mundo. Não quer dizer que a sociedade continuará inalterada, de forma alguma, mas que atacar a forma física da civilização não afeta exatamente a civilização. A civilização é por si mesma uma forma de pensar. Só poderemos abandonar a civilização quando ela não nos for mais necessária, quando quisermos algo melhor. Acreditamos, como primitivistas, que a maioria das pessoas não sabe que algo melhor que a civilização seja possível, e por isso não está disposto a fazer esse tipo de questionamento. Eu pessoalmente achei muito útil e instigante o texto. Acho que responder a ele abriu novas perspectivas para mim, e espero que meus comentários tenham sido úteis para o autor e para os demais leitores do texto.