Um Batman anda assombrando os morros cariocas pintados pelas mídias de plantão. Sombrio, psicótico, obcecado pela ética, inflexível com os buracos enormes das instituições, cinzento e noturno, esse Batman tem um nome igualmente cinematográfico: Capitão Nascimento, o Neo adequado para nossa Matrix.
Embalado por uma estratégia de propaganda que o colocou nas mídias com um impacto policialesco, já que supostamente uma cópia do filme pronto foi pirateada por um engenhoso auxiliar de edição, o filme em questão tem provocado um élan na macerada sociedade pela violência brasileira.
Não por acaso foi feito no Rio de Janeiro, essa vitrine pedagógica de nossos piores horrores sociais.
Existe uma guerra em andamento nos morros cariocas. Eis seu imperativo. E numa guerra, todos sabemos, vale tudo. O grande problema é: quem são mesmo seus combatentes? Seus senhores? Guerra de quem contra quem?
Segundo as prescrições do filme, da corrupção contra a ética; dos boyzinhos universitários contra os valores da responsabilidade social; dos mocinhos fardados de preto contra os bandidos sem coração e sem dentes; dos métodos de tortura sistêmica contra qualquer noção de direito.
Coragem, determinação, clareza de propósitos, é como se o tal capitão fosse a cura para a doença da violência; sem ele, o crime já teria vencido, com certeza. O resto, bem, o resto é porrada.
Podemos ensaiar sobre as razões que tem colocado o filme na boca do povo. Suas explicações sobre a violência são acessíveis e empáticas ao que já se vem construindo no coração e nas mentes das pessoas: está localizada nos morros cheios de pobres; consiste numa relação entre consumidores e usuários de drogas vindos das classes superiores que viabilizam os traficantes que, por sua vez, se estabelecem detendo o terror com armas que aparecem trazidas pelos policiais corruptos.
Em meio a isso tudo, arautos de uma outra ordem que se esfacelam para modificar essa situação, fortalezas de uma outra moralidade, fruto de uma estranha mistura: degeneração moral, guerra, emergência de uma alternativa possível, que congrega num mesmo ser as funções de júri, juiz e carrasco. Que ninguém se engane: o bicho papão vai te pegar, criminoso! É só ele querer.
Essa fórmula nada inovadora tem provocado um enorme desabafo que percorre o corpo social numa estranha sincronia: classes médias, periferias, crianças, adultos e velhos, universitários, todos balançam sincronicamente a cabeça num coro assustador. A unanimidade, a unanimidade. Como é bom ver o acerto das torturas, as execuções, a sórdida e merecida punição dos corruptos, o apartaid, finalmente.
Algo em nós vibra: é isso aí! Eis a solução! Nem sei como não pegaram lá algum político, entre a mixórdia dos porcarias sociais, essa gente má, arramatadamente má. Depois bastava matar, talvez só sobrem os bons e só então teremos justiça, numa sociedade saturada de bondade, de ética, dessa índole que, afinal, nos define, a todos nós que vibramos.
Se o filme tem um problema, é esse. De retro-alimentar o já sabido, de oferecer a droga aos viciados, de simplificar em nome do conforto, tal como os livrinhos do Jô Soares ou do Paulo Coelho. Segundo essa fórmula, textos claros são impressos com
letras e espaços maiores, pois valorizam a leitura dos não leitores que, em pouco tempo, “devoram o livro”. A sensação que fica é de que a obra é boa e de que o sujeito lê rápido. Está tudo bem, então. Que venha o próximo.
São pílulas de crítica. Parece que entendemos tudo e, portanto, não precisamos fazer nenhum esforço, pois ao herói é que cabe resolver. Chame o BOPE pra essa canalha toda.
O problema é que existem outras explicações não tão tranqüilas assim. Todos os índices de violência mostram que, depois de 1990, os números registrados nos gráficos saltaram controladamente para cima: assassinatos, consumo de drogas lícitas ou ilícitas, suicídios, estupros, roubos e assaltos. Nesse mesmo período o crime organizado revelase. O tráfico de armas explode em dimensões nunca antes vista.
Como quer que o chamemos, o modelo político e econômico que passa a vigir produz desemprego estrutural, desregulamentação do mundo do trabalho, desmontagem das proteções estatais, privatização e incremento de tecnologias de ponta. Aumento dos efetivos, dos exércitos privados e dos sistemas de vigilância. Resta ao Estado cuidar da repressão, do que restou das sucatas da saúde pública e da educação para os pobres, que não são lá muito exigentes.
Contudo, outros dados dão conta de que apenas um por cento dos moradores de periferias estão envolvidos com o crime, o que elimina a hipótese consagrada de que miséria traz violência. Mais, oitenta por cento dos crimes de assassinato são cometidos por criminosos sem passagens pela polícia, ou seja, pessoas que cometem seu primeiro crime.
Acrescente-se que embora os envolvidos com o crime sejam da ordem de 1%, a repressão recai sobre 100%.
De outro lado, o consumo de drogas está relacionado com vários e contingentes fenômenos da vida moderna calcada basicamente no consumo, esvaziando o sentido do trabalho e deslocando os sentidos da existência num vazio monstruoso, na perda gradativa da sociabilidade e no isolamento progressivo do indivíduo, encarcerado por muros raciais, étnicos, sociais, sexistas, etc.
Além disso, em tempos de democracia, o empoderamento de sujeitos sociais é condição imperativa para a manutenção do status quo vigente. Principalmente em processos de favelização crescentes oriundos da nova ordem mundial, esses
empoderamentos (da mulher, do jovem, dos velhos, dos traficantes e suas estruturas, da polícia, dos universitários, das ongs, das identidades étnicas, dentre tantos outros)qualificam a iniqüidade em variados níveis nos bolsões de miséria.
A organicidade e dinâmica dessas complexas redes de intercâmbio consolidam a promessa e a ambição da inclusão enquanto mantém tudo exatamente como deve estar, no caminho seguro da democratização do infortúnio, única socialização que temos a certeza de usufruir.
Enquanto isso, para todos, o lenitivo da educação nunca suficiente, culpando a todos e a cada um pelo fracasso. Falta o primeiro grau, o segundo, a faculdade, a pós graduação, o mestrado, o doutorado, a livre docência, o inglês, o francês, o espanhol, o alemão, a computação, a beleza, a magreza, a vestimenta, a postura, o comportamento, o sorriso, a alegria, a saúde, os dentes.
Não, é tudo muito complicado. Melhor mesmo é dormirmos acalentando que nos morros, de alguma forma, o Batman está vigilante e nessa guerra, que só agora o Luciano Hulk se deu conta, estamos do lado certo, seja ele qual for.