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Espere Resistência
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Como você quer morrer?


Pendurado de uma viga com o banquinho caído ao chão embaixo de você? De uma overdose de calmantes, como uma atriz ou uma dona-de-casa de saco cheio? Abrindo suas artérias com uma navalha, em uma banheira de água quente para que você não trema muito quando o calor deixar o seu corpo?


Repentinamente, numa explosão de miolos e ossos no concreto aos pés do arranha-céus onde você trabalha? Ou aos poucos, prestação após prestação com os cigarros, gordura saturada e ar poluído, pressão alta, radiação, toxinas na água, substitutos cancerígenos para o açúcar e telefones celulares?


Você quer certeza, com uma arma na sua têmpora? Ou você joga na loteria ― dirigindo na auto-estrada, fazendo sexo sem proteção, pagando impostos a um governo que pode enviá-lo à guerra ou a polícia à sua porta com armas na mão?


Talvez você esteja sendo pago para isso ― o quanto você vale por hora? Você lava pratos por um salário mínimo, dá e recebe ordens por um salário de gerente, luta para chegar no topo para conseguir um preço justo pela sua vida?


Ou você a está adquirindo? Comprando-a em porções individuais, comprando para você um gostinho sempre que pode com álcool, cocaína, heroína, prostitutas, filmes de ação, videogames, televisão, o que for preciso para se soltar por um instante? Às vezes você quer ir direto ao inevitável, lançando-se no abismo de algum vício, religião, negação absoluta de tudo que você sempre quis, tudo que lhe desapontou?


Você saboreia cada gota, fazendo-a durar o máximo possível? Uma dose moderada todo dia para o resto da sua vida, com seguro saúde para ter certeza que você não vai perder uma única hora? Ou você está pronto para acabar com isso de uma vez, consumar o negócio com um gesto desafiador, exibindo o seu desdém pelas tragédias absurdas deste mundo enquanto você cai no meio de uma rajada de balas?


Ou talvez, no final das contas, você não queira morrer. Mas o que há além disso?

DESESPERO


"Eu gostaria que todas as pessoas que se mataram estivessem vivas ― e todas as pessoas que estão vivas se matassem!"


Se há uma camada social abaixo da classe baixa, um grupo que sofre ainda mais com os absurdos de nossa sociedade, são os suicidas. A classe suicida ― a todo minuto, mais um se espatifa na calçada. Quem é mais desprovido que eles? Eles só são reconhecidos quando se ausentam, só o seu sangue fala por eles. Eles sabem melhor do que qualquer um o que deve mudar neste mundo, e ainda assim desesperados por não conseguir modificá-lo eles se vingam sobre as únicas vítimas fáceis ― dando um novo significado ao dito de que aqueles que só fazem meia revolução cavam os próprios túmulos.


Imagine um pessoa que sente que a sua vida está fora de seu controle ao ponto de que ele só pode reconquistá-la se matando! Pode uma sociedade ser livre e saudável se as pessoas vão a tais extremos para conseguir escapar?


Assim como o roubo e o adultério, o suicídio é proibido, uma abominação inominável. Matriarcas satisfeitas que nunca tiveram que lutar contra uma depressão debilitante sentem-se autorizadas a desprezar a covardia daqueles que tomam a difícil decisão de acabar com suas vidas. Mesmo os doentes terminais não podem decidir quando e como eles vão morrer ― existem leis que os proíbem, como se os vivos pudessem legislar sobre aqueles que vão morrer! O que dizer de uma civilização que não apenas proíbe os seus cidadãos de se matarem mas nem ao menos permite a pergunta de se a vida merece ser vivida?


E ainda assim cometemos um pequeno suicídio a cada instante em que nos negamos aa vida que gostaríamos de viver. Suicídio à vista é proibida, mas a maioria aceita de boa vontade a morte parcelada, gastando sua vida pouco a pouco, de hora em hora. Não importa quão insatisfeitos estão em suas vidas, eles não ousam saírem dela, pois Deus está esperando do outro lado para puní-los por falharem em suas tarefas terrenas ― Deus, ou então a Opinião Pública, a quem Ele nomeou em Sua ausência.


Enquanto isso, se um jovem se alista no exército e obedece cegamente ordens que o levarão a uma morte sem sentido, ele é considerado corjoso e valoroso. O Suicídio, como o Desastre, é perfeitamente aceitável se ele ocorrer dentro dos termos estabelecidos pela ordem vigente; você pode morrer nas suas mãos, mas não por sua própria vontade. Aqueles que se dão um tiro ou se enforcam são hereges ousados, como os místicos pretensiosos que alegam receber uma luz divina que contorna o Papa: se auto-destruição é a ordem do dia, eles são determinados a ter uma relação direta com ela, não importa o que os outros digam. Ao rejeitar a morte-viva e a soberania das autoridades sobre as suas vidas, eles estão apenas a um passo de rejeitar a morte e a dominação: Nem a morte, nem os impostos!


Mas de novo, assim como o roubo, o adultério e outras válvulas de escape, o suicídio nos isola ― de fato, é o ato mais isolador de todos. Ao mesmo tempo em que ele devolve um instante de autonomia a um indivíduo, ele evita que as pessoas estabeleçam uma propriedade coletiva das suas vidas. Aqueles que cavam suas próprias covas só fazem meia revolução. Se ninguém pudesse roubar, se ninguém pudesse trair, se ninguém pudesse acabar com a sua vida e mesmo assim ainda houvessem as tensões que assolam nossa sociedade hoje ― imagine os grandes levantes que se seguiriam!


Se todos que se mataram pudessem comparar suas anotações em algum grande centro de convenções no além, o que eles poderiam nos dizer? Talvez eles pudessem ajudar uns aos outros onde ninguém mais pôde; talvez eles se arrependessem de que, ao invés de terem se destruído, eles não montaram uma organização revolucionária composta daqueles que não têm nada a perder; talvez eles estranhassem que pareceu bem mais fácil para eles fazerem violência contra si mesmos ao invés de responder a violência exercida contra eles.


É tarde demais, é claro ― suas vidas estão fixadas na eternidade, isoladas como moscas presas no âmbar. Mas ainda há tempo para encontrarmos aqueles que estão contemplando o suicídio, encorajá-los a falar livremente sobre os seus sentimentos e darmos o melhor de nós para construirmos um mundo que ninguém gostaria de deixar para trás.


"Acabe com o meu sofrimento ou me tire dele!"


A vida não é simplesmente uma prisão, uma sentença. Isto ocorre a todos pelo menos uma vez. Temos uma opção que nos torna mais livres que os deuses, assim como todos empregados são mais livres que todos os patrões: nós podemos cair fora. Podemos saborear esta idéia em todos extremos; ela nos dá consolo quando nada mais dá. Nada nos obriga a viver ― portanto, se tivermos a coragem para isso, a todo momento a vida pode se tornar um quadro em branco, um espaço no qual tudo é possível e podemos arriscar tudo.

Com esta liberdade, só seremos escravos se o quisermos ser. Escravidão é para aqueles que ainda acreditam que seus chefes controlam a morte assim como a vida ― não para nós. Para nós, só há o desconhecido. Ele pode ser terrível, ele pode ser a salvação, ele pode ser vazio, mas nunca o conheceremos, seja na vida ou na morte. Fronteiras para serem cruzadas, novos mundos para explorar, abismos para corrermos riscos ― sim, a possibilidade de alegria, de realizar nossos desejos mais queridos, e de também de arriscar. O perigo de finalmente confrontarmos o medo, ousando o desconhecido, fitando o lado feio da vida nos olhos ― de uma forma ou de outra pedirmos demissão do emprego de existir.


Para a maioria de nossos contemporâneos, a própria vida é um emprego, uma luta desesperada para darmos conta de milhares de obrigações ― incluindo a mais triste de todas, nos divertirmos. Esses infelizes esquecem a leveza da vida, a leveza de cada momento, cada situação, em face da não-existência.


Podemos escolher não viver. Então não há razão para não nos abrirmos, arriscarmos tudo, para uma vida de felicidade. Há sempre a opção de pôr um fim às coisas ― podemos também fazer apostas altas se escolhemos existir. Pois afinal, o pior que pode nos acontecer já está garantido.


Não existe motivo para nos levantarmos de manhã, senão para viver. Nenhum patrão, nenhuma lei, nenhum deus pode tirar de você a possibilidade de dizer Não.


Tudo isto é inútil, e não é novidade, para o suicida, que já se desligou da vida e deseja a morte simplesmente para finalizar o arranjo, para dar um fim à inconveniência de sentir uma coisa e viver outra. Quando você já está exausto e desmoralizado, nenhum simples exercício mental vai lhe fazer mudar de idéia; homens-bomba, ao contrário do que se imagina, devem agir a partir de um enorme investimento nesta vida para serem capazes de morrer para fazer mal aos outros. O suicida comum mal consegue passar o aspirador no seu apartamento, muito menos levar a cabo uma missão elaborada.


Mas imagine se as pessoas vivessem como se fossem morrer a qualquer instante, seria como se elas nascessem de novo todos os dias! Imagine se ninguém deixasse a vida se tornar um emprego para si ou para os outros! Quantas pessoas se matariam? As pessoas cometem suicídio quando é mais difícil para elas imaginar deixar as suas obrigações de lado do que deixar de existir ― aqui estão novamente os nossos costumes e investimentos, se tornando cancerosos e inorgânicos, levando-nos para o túmulo antes do tempo.


Vida ― Considere a Alternativa


Se fôssemos corajosos ou impulsivos o suficiente para tal, nosso desespero nos daria poderes sobrenaturais. Imagine ser capaz de agir sem medo das repercussões, de escolher o desconhecido em vez do insuportavelmente familiar, largar obrigações e relacionamentos nocivos à nossa saúde no instante em que você perceber o que eles são. É preciso uma misericórdia implacável para deixarmos o sentimentalismo de lado e nos lembrarmos de tudo que ainda não aconteceu e ainda pode nunca acontecer, todos os sonhos que nunca se tornaram realidade ― para reconhecer que não podemos esperar para sempre, não temos tempo para isso.


Deixe o passado ir embora. Todas as antigas batalhas que você ainda luta, todos os seus mecanismos de negação e de defesa, todos os vícios e inércia que você acumulou e todos os medos que lhe prendem a eles. Esta será a coisa mais difícil que você terá que viver ― mais deixe-os ir, deixe-os morrer, tenha coragem nos momentos silenciosos no vácuo quando você espera, tremendo, a sua nova vida nascer. Ela existirá.


Desespero. É a nossa única esperança.




Quando os seus amigos lhe entendem errado e os seus inimigos entendem bem demais, quando acordar de manhã parece mais uma derrota que um triunfo, quando a lâmina de barbear ou o penhasco lhe chamam, lembre-se ― a morte não é bonita, só tem uma boa campanha publicitária. Lembre-se o que eles fizeram com Miquelângelo, esperando até que ele morresse para pintar sobre suas obras de arte, assim como da irmã racista que Nietzsche odiava que lhe apresentou ao mundo como seu próprio campeão depois que ele perdeu sua sanidade, e de como Paulo usou Jesus, e Platão usou Sócrates, e os Comunistas usaram Durruti. Os mortos não podem se defender.


Não dê nada aos seus inimigos. Deixe suas lágrimas virarem pedras que poderemos lançar com catapultas. Escreva o seu próprio epitáfio e grite-o aos quatro ventos. Esta vida é uma guerra que ainda não estamos vencendo para os filhos de nossas filhas; não faça o trabalho dos seus inimigos, termine o seu.


Se você está lutando, você já venceu.


"Talvez tudo que sobrou do mundo seja um deserto coberto com pilhas de lixo e os jardins suspensos do grande palácio de Khan. São as nossas pálpebras que os separam, mas não temos como saber o que é dentro e o que é fora."