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Luis Felipe Murillo e Luiz Gustavo Pradella

Introdução[]

Nas últimas décadas do século XX emergiu entre os movimentos libertários e ecologistas radicais uma nova vertente anarquista. Coincidindo com a "virada do segundo milênio" este movimento pretendia, não só estabelecer uma crítica ao capitalismo e ao estadismo, mas também ao consumismo, à poluição ao assomo tecnológico e às "artificialidades" abundantes em seu meio social.

Neste cadinho em que surge o primitivismo soma-se ainda e em grande medida a frustração frente às infrutíferas estratégias convencionais de transformação social. Da esquerda partidária ao mundo do trabalho, do ecologismo soft à militância profissional, os primitivistas refutavam toda e qualquer forma de relação com o meio que não se desse integralmente em um modo de vida nos conformes de suas concepções de "natureza".

Deram-lhe o nome de primitivismo pois a solução, afirmou mais de um de seus defensores, seria um retorno ao modo de vida, (não só) pré-industrial, (mas também) pré-agrícola e (quiçá) pré-simbólico, modo de vida este que teria existido supostamente nos primórdios da humanidade, no tempo em que esta não havia ainda sido separada do "reino da natureza".

Frente a um futuro marcado pelo símbolo da catástrofe ecológica, de pessoas cada vez mais atomizadas (individualizadas) e perdidas num vazio de relações crescentes, da vida confinada das sociedades de produção e consumo, o primitivismo deste período propôs, como solução o abandono dos modos de vida dependentes do que concebiam como "tecnologia" e "ciência" e o retorno à "natureza".

Logo se formaram diferentes correntes primitivistas, cada uma delas com divergências significativas, sobretudo com relação ao que seria ou não visto como “mal”, e qual seria o momento derradeiro do desvio que deu origem aos males do mundo civilizado, moderno e industrial. Sem medo de se curvar às contradições, alguns de seus defensores atacaram o racionalismo através de argumentos racionais. Recorreram à filosofia, e à pesquisas científicas (antropológicas e arqueológicas) para fazer frente à ciência iluminista.

Seus leitores sempre que possível voltaram as costas para as "benesses" propagandeadas pela vida industrial, em nome do "natural". Alguns deles formaram grupos de renúncia, bandos vivendo dos restos de feiras e supermercados, vivendo em okupas e se deslocando juntos.

(...)

Selvagerias[]

Existe no meio (anarco)primitivista um fascínio em relação às crianças ferais, crianças que apartadas de um grupo humano e adotadas por animais passam a exibir um comportamento semelhante aos animais com os quais convivem, desenvolvendo até mesmo habilidades e resistências impressionantes: correr com gazelas, nadar como mamíferos aquáticos ou se comunicar gestualmente com grandes símios.

Este fascínio remete talvez a possibilidade sugerida pelos primitivistas de que estas crianças, livres da domesticação de seus iguais, estariam mais próximas de um possível estado selvagem, um estágio natural no qual não teriam ainda sido afetadas pelo pensamento simbólico, sendo portanto, mais livres do reino da cultura do que nós os seríamos. Ainda nesta via de raciocínio, as crianças ferais são tomadas como exemplos vivos de seres humanos em um estado de natureza, homens naturais, muito semelhante aos bons selvagens a que se referia Rousseau.

Neste breve compêndio[1] temos por objetivo pensar antropologicamente o caso das crianças ferais, buscando delinear também os elementos que dão origem ao homem natural, não em uma suposta esfera do pré-cultural, mas enquanto conjunto de referências originado da composição de outras figuras presentes desde longa data nas chamadas sociedades ocidentais.

O homem natural na mitologia ocidental[]

«Torvado vem na vista, como aquele
que não se vira nunca em tal extremo
Nem ele entende a nós, nem nós a ele,
Selvagem mais que o bruto Polifemo.
Começo-lhe a mostrar da rica pele
De Colcos o gentil metal supremo
A prata fina, a quente especiaria
A nada disto o bruto se movia»
(Camões, Lusíadas, V, 28)


A luz de nossos argumentos passa pelo reconhecimento de que esta figura mítica surge do bricolage de outras que lhe precedem, das quais herda características e ganha novas roupagem.

, a compor com uma série de mitologias nas chamadas sociedades ocidentais, de matriz judaico-cristã, da expulsão do homem do jardim do Éden onde todas as formas de vida viviam em harmonia, o mas também greco-romana, do bom centauro Quiron, figura surgida de inúmeros povos bárbaros que eram, quase um ser, sobre seus cavalos, para além de qualquer fronteira.


Crianças ferais[]

«O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.»
(Augusto dos Anjos, Versos Íntimos)


Ao nos depararmos com a descrição do homem natural em o Futuro Primitivo, não há como não recordarmos os diversos relatos de crianças adotadas por animais – carnívoros ou herbívoros – encontradas em florestas e desertos, isoladas de qualquer contato humano, assumindo um comportamento idêntico ao de seus pais adotivos.

Em 1960, o antropólogo Jean-Claude Auger, viajando sozinho pelo Saara Espanhol, encontrou um grupo de nômades Nemadi que contaram a ele sobre o avistamento de uma criança selvagem. No dia seguinte, tomando a direção indicada pelos nômades, ele viu uma criança nua galopando em grandes saltos em um grupo de numerosas gazelas brancas. [...] Esperou por muitos dias até que, enfim, surgiu a oportunidade de observar o garoto-gazela mais de perto: "ele era vigoroso, queimado de sol, olhos amendoados e tinha no rosto uma expressão amável; aparentava dez anos de idade. Seus tornozelos eram desproporcionalmente grossos e fortes; seus músculos eram firmes. Quando ouvia barulhos estranhos, ficava alerta, tremia os músculos, movia o nariz e as orelhas, tal como suas companheiras gazelas. Em 1966, fizeram uma tentativa de resgatar o jovem usando uma rede; não funcionou. Diferente de outros casos de crianças selvagens, jamais foi capturado. Auger recusou fotografá-lo pois entendia que não era justo prendê-lo e domesticá-lo.

STRIVAY, 2006

Sob o prisma do homem primitivo, livre do simbólico como nos propõe Zerzan, estes casos poderiam ser encarados como exemplos de uma humanidade livre da degradação do cultural. Em uma abordagem que se concentra nos aspectos culturais, poder-se-ia pensar que estas crianças nada mais fazem que apreender culturalmente formas de comportamento de outros animais, em uma aprendizadagem instintiva, ou seja, de alguma forma simbolizam e reconhecem o mundo a partir de referenciais que não são propriamente humanos, bem distantes de qualquer forma de comportamento humano a ser considerado com natural ou precedente à cultura.

As crianças selvagens quer sejam produto do acaso quer da experimentação, podem ser monstruosidades culturais, mas em nenhum caso testemunhas fiéis de um estado anterior. (...) Assim, é impossível esperar do homem a ilustração de tipos de comportamento de caráter pré-cultural

LÉVI-STRAUSS, 1982:43

Sem colocar em questão o binômio natureza e cultura, Lévi-Strauss trata de conciliar ambos os pólos em sua definição de humanidade: o homem é um ser biológico ao mesmo tempo em que é um indivíduo social (LÉVI-STRAUSS, 1982:41). ). Diante das fronteiras que se insinuam porosas e incertas, em um cosmos dividido, o pai do estruturalismo define o homem como um misto de elementos culturais e naturais, incapaz de se dissociar de qualquer uma das duas esferas.

Há de se levar ainda em conta, para uma análise mais apurada, os recentes estudos de Etologia, principalmente entre os grandes símios – demonstrando aspectos comportamentais até então desconhecidos, transmitidos socialmente entre os diferentes membros de um grupo, de modo que grupos distintos de animais da mesma espécie possuem formas diferenciadas de obter e manipular objetos e alimentos, distante de um comportamento que poderíamos chamar de instintivo. Como o apresentado por Descola:

Mais uma vez é sobre os chimpanzés, agora em liberdade em seu meio de origem, que se refere o terceiro exemplo. Os estudos que lhes consagraram os etólogos indicam, sem dúvidas, que não só são capazes de fabricar e de utilizar ferramentas rudimentares de pedra, estendendo-se-lhes assim o privilégio do homo faber largamente concedido somente ao homem primitivo, mas também que os bandos vizinhos de símios elaboram e transmitem famílias de técnicas bem diferenciadas. Na terminologia dos pré-historiadores, os chimpanzés possuem assim tradições distintas no domínio da cultura material, particularismos técnicos e comportamentos próprios a cada bando, que podem conter até em torno de quarenta traços distintivos – tipos de utensílios e métodos para quebrar nozes, técnicas de caça, formas de eliminar lendias, etc. -, todos independentes das condições geográficas locais.

DESCOLA, 2005:99-100 tradução nossa

Se por um lado as crianças selvagens imitam os animais através da cultura e apreendem socialmente seu comportamento por meio de preceitos culturais, por outro, alguns animais também possuem formas, ainda que limitadas, de transmissão cultural. Ainda segundo Descola (2005:100) estas são evidências mais que consideráveis da impossibilidade de se explicar o comportamento, seja ele humano ou não, a partir do binômio natureza e cultura.


Referências

  1. Trata-se de um compendio pelo caráter de brevidade que queremos inferir ao texto. Certamente, em termos antropológicos, há muito mais a ser dito sobre este assunto.