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Espere Resistência
CrimethInc


Antes que a primeira flecha saísse zunindo de um arco, os seres humanos sonhavam em voar. Sem asas, eles deitam de costas em campos espinhentos, observando os pássaros. Os seus descendentes trocavam estórias de tapetes voadores, cavalos alados e sandálias, bruxas em vassouras, mulheres que vestiam casacos mágicos e viravam cisnes. Feiticeiros e xamãs procuravam elevação através de experiências místicas; cientistas populares faziam planos de roubar as asas dos anjos, assim como Prometeus roubou o fogo dos deuses.


Há onze séculos atrás, Abbas Ibn Firnas, um dos primeiros pioneiros da aviação cujo nome nos é conhecido, se jogou de uma montanha com um planador feito em casa. Ele tinha sessenta e cinco anos de idade. Inspirado, um monge inglês projetou asas de acordo com a descrição de Ovid das asas que Dédalo construiu; estas o carregaram por duzentos metros pelo céu, mas ele quebrou ambas as pernas quando aterrissou. Marco Polo voltou à Europa para relatar que os chineses estavam mandando pessoas aos céus em pipas; Leonardo da Vinci desenhou esquemas de um helicóptero; três séculos antes do famoso vôo em Kitty Hawk, um cientista turco vôou centenas de metros no céu e pousou com segurança no Bósforo. Centenas, se não milhares de pessoas morreram em tentativas semelhantes de chegar um pouquinho mais perto do céu. Era uma obsessão mundial.


Algumas gerações mais tarde, eu estava sentado em um aeroporto por um vôo atrasado, um viajante anônimo numa multidão irritada. Eu fechei o livro e coloquei-o de volta na minha pasta, ponderando que o caso amoroso da minha espécie com o ato de voar tinha esfriado. Talvez fossem as longas filas para passar nos pontos de segurança: haviam novas restrições a líquidos na bagagem de mão, e os passageiros tinham que passar por vários grupos de homens mandões em uniformes formais apenas para encontrar um assento. Talvez fosse o tom estridente da voz nos auto-falantes seguido de avisos de ainda mais atraso; talvez fosse o incômodo do ar estagnado, viciado, ou a idéia bizarra de que em algum lugar lá fora existiam pessoas que queriam arremessar aviões contra prédios conosco dentro.


Há muito tempo atrás, algumas pessoas declararam que as viagens aéreas juntariam as pessoas, apagando as fronteiras e preconceitos para inaugurar uma nova era de amizade e compreensão universais; eu refletia sobre isso enquanto meus companheiros de viagem mexiam em seus celulares, meticulosamente evitando o contato visual com outras pessoas. Futuristas haviam alardeado que a velocidade e o brilhantismo do vôo iria inspirar uma felicidade transcedental; esperando na pista de decolagem, onde os corações dos irmãos Wright saltitavam, os outros passageiros folhavam catálogos preguiçosamente e abaixavam as cortinas para tapar o sol. O desafio de voar havia comandado as paixões dos mais corajosos e bravos dos meus ancestrais; quando nosso avião decolou, depois de ignorar a apresentação robótica dos procedimentos de segurança, seus herdeiros dariam uma breve olhadela na paisagem escultural pela minúscula janela antes de se acomodarem para assistir... um filme! Dez mil gerações sonharam em voar, e nós precisamos de filmes para anestesiar o nosso tédio no ar!


Talvez voar simplesmente não fosse tão bom, no final das contas. Algumas maravilhas que foram caçadas por muito tempo acabaram sendo decepções; talvez a maioria delas sejam. É claro, esta explicação ignora o fervor dos escritos de Antoine de Saint Exupéry, ou as forças que o levaram e outros a continuar voando em situações cada vez mais perigosas até que a sua sorte acabasse. Ela também ignora as experiências de pessoas que eu mesmo conheci: afinal, a Chloe não conta que roubar a asa-delta de seu tio como a experiência mais empolgante da sua juventude?


A alternativa não estava tão prontamente aparente, e as suas implicações eram mais dramáticas. E se voar, como conhecemos, não era voar? Isolados emocionalmente da aventura de subir no ar, fisicamente isolados da paisagem abaixo, privados de toda sensação de estar voando exceto por uma leve náusea, nós poderíamos igualmente estar amontoados na câmara de um tanque de isolamento. Meus companheiros aeronautas desembarcariam em um aeroporto idêntico àquele em que embarcaram, impacientes para continuarem suas vidas ocupadas; não havia nem mais o fingimento de que eles eram parte de algo glorioso, que eles tinham algo em comum com os intrépidos e viajantes de tempos idos. Talvez os xamãs da pré-história soubessem mais sobre voar que os homens de negócio com seus cartões de milhas jamais saberão.


E se voar não fosse realmente voar, e as próprias viagens, jantares, sexo, trabalho, amizades, romance, vida? E se eles, também, não fossem eles? Todos à minha volta estavam com olhares vazios voltados às televisões que pendiam do teto. Alguns segredos estão escondidos à vista de todos.


Será que eu nunca tinha vivido? Eu tinha viajado, mas em todo lugar que eu fui as pessoas falavam a minha língua, aceitavam o meu dinheiro, afirmavam as minhas afirmações. Eu morei em apartamentos alugados construídos e mantidos por pessoas que eu nunca encontrei; eu não sabia como construir uma casa, nem mesmo como consertar o meu encanamento. Eu comprava produtos alimentícios de supermercados sem a menor idéia do que havia neles ou de onde eles vinham; eu não sabia como era caçar e matar um animal ou ter que depender de uma horta para sobreviver. Eu fazia doações à caridade, mas nunca fiz nada sério para corrigir injustiças ou mesmo interagir com quem as sofria. Eu votei em políticos e assinei petições, mas nunca organizei nada na minha comunidade, nunca parei uma retroescavadeira ou comecei um tumulto. Eu tinha sonhos e aspirações, mas parecia que eu tinha visto mais filmes de ação na televisão do que tido aventuras na vida real. Haviam coisas que eu adorava fazer, objetivos que eu esperava alcançar, mas eu passava muito mais tempo trabalhando para pagar pelo aluguel, pela comida, caridade, televisão.


Eu vinha refletindo sobre essas questões já havia meses antes de chegar no balcão de venda de passagens, mas a situação no Portão Dez as deixavam muito nítidas. Eu queria viver tão sinceramente, o que quer que isso significasse, mas eu estava encasulado em uma sociedade que parecia tornar isso impossível, que se vendeu aos seus cidadãos justamente dizendo que tornava isso impossível.


Eu era como todos os outros só que eu não tinha uma hipoteca para pagar, uma família para alimentar, ou um vício em remédios tarja preta para sustentar. Talvez eu pudesse encontrar uma saída. É claro, eu não tinha idéia do que fazer ou onde ir; tudo que eu tinha para continuar era a vaga noção de que deve haver algo mais lá fora. Não importa como eu os olhasse, certos fatos da vida não pareciam ser negociáveis: sem uma renda, por exemplo, eu imaginei que eu nunca iria andar de avião de novo a não ser que de alguma forma eu fosse deportado.


Eu considerei essa possibilidade. Quantas pessoas podem dizer que foram deportadas? Muitas, mas não muitas do meu círculo social. Essa era outra forma de isolamento, outra camada do casulo.


Eu estava realmente tão desesperado para saltar de um precipício, sabendo que eu iria aterrissar em algum lugar ou deixar de existir? Eu não podia negar que uma parte de mim respondia ao pensamento. Que ironia: o vôo real que a minha civilização oferecia não me atraía nem um pouquinho, mas o proverbial salto no vazio fazia o meu pulso acelerar. Ao saltar, eu poderia ser um explorador como os meus ancestrais, um pioneiro como Abbas Ibn Firnas.


Se eu o fizesse, todo mundo que eu conhecia me acusaria de voar para fora do mundo, enganado, como Ícaro. Eu teria que lutar contra a convicção, incutida em mim desde a infância, de que aqueles que não fazem a sua parte na sociedade são fracassados, parasitas. Por outro lado, se...


Mas depois de muita espera o vôo finalmente chegou no portão. Fizemos fila obedientemente para embarcar em ordem de status econômico. Aquele avião nunca cairia no Bósforo nem voaria perto demais do sol. Se eu quisesse algo além do futuro que já estava escrito para mim, eu teria que partir sozinho.

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