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O problema da liberdade civil está disseminada e tematizada, como subsolo fecundo e relevos altaneiros, por todos os Discorsi. Já na carta de apresentação do livro, Maquiavel se posiciona de modo a ressarcir e corrigir a imagem anti-republicana, que acaso poderia estar implicada na dedicatória de Il Principe. No mesmo passo parece tentar seduzir os jovens, cuja orientação política, de início republicana, encontram-se propensos a utilizar a força para resolver de vez os dilemas e eternos conflitos da política florentina. Porém, com sua habilidade peculiar, Maquiavel adequa o discurso de modo a sugerir e encaminhar um reexame do passado, tão conhecido dos renascentistas, mas de modo problematizado. Ou seja, se se vinha tentando temerariamente reexaminar o passado, sem nada aprender com ele, para Maquiavel a única forma precisa capaz de escapar do imobilismo político contemporâneo era aprender verdadeiramente com o passado. Daí a necessidade de rever a história de Roma, pela pena de Tito Lívio, e transpô-la para as situações vividas dramaticamente por Florença, naqueles anos. Nesta operação, Maquiavel finda por deslocar o centro das atenções das instituições políticas florentinas para as romanas. Mas, trata-se de uma interpretação de Maquiavel, que pela observação dos fatos hodiernos e pela imaginação, acaba engendrando os fundamentos da origem política dos conceitos políticos.

Os Discorsi principiam com o levantamento dos vários tipos de fundação livre da dominação por outros povos, que uma cidade poderia ter. Assim, os capítulos iniciais, 1, 2, 3 e 10, do livro I dos Discorsi apresentam o problema crucial da fundação, em que a questão da liberdade está entrelaçado com ele. Tema, ao menos retoricamente, bastante familiar à época. De saída, Maquiavel enquadra a situação de Florença, que pelo quase nulo progresso de suas instituições, força a lembrança do fato de ter tido uma fundação sem liberdade e atrelada à expansão de outro povo --o romano. O exame das condições atuais da cidade e a derivação do passado, é o suficiente para tal enquadramento. Se as cidades livres na origem puderam expandir e percorrer o caminho da potência, com grandeza e glória, as outras, tal qual Florença, que não nasceram livres, em geral, não puderam expandir-se. O fator liberdade é fundamental, pois, uma vez amealhado na fundação magnífica de uma cidade, é a garantia quase completa da conservação do mesmo no processo de expansão da cidade. Maquiavel explora o contraste entre Florença e Roma, esta como modelo de república livre, e neste intento não só faz compreender seu próprio tempo em confronto com a Antigüidade, deixando claro que o humanistas não conheciam, verdadeiramente, as origens de Florença, como projeta compreender “a política pelo estudo de suas formas mais perfeitas.”

Contudo, “o contraste mais importante desse primeiro capítulo não é, no entanto, entre Maquiavel e os humanistas, mas entre Roma e Florença”. Entretanto, o historiador de idéias, Quentin Skinner, tal qual um renascentista, parece levado pela dramática persuasão maquiaveliana, tomando em conta, já naquele primeiro capítulo dos Discorsi uma definição formal de liberdade, como “poder de agir independentemente do concurso de outros agentes, dedicindo apenas a partir da sua própria vontade”. Bignotto não pactua com essa interpretação. Para ele esta identificação se inscreve bem no universo das “exigências de uma história tradicional das idéias, do que para compreender o sentido da obra.”

Porém, Maquiavel, acrescentará a esse caldo a questão da tensão das “discórdias civis”, nos Discorsi e das “intrínsecas inimizades”, nas Istorie Fiorentine, como condição sine qua non da liberdade.

Maquiavel principia o capítulo 2 com a especificação de caso das cidades que nasceram livres. Classifica aquelas que puderam contar com o beneplácito de um bom legislador desde o começo, como é o caso de Esparta, mantendo-se em paz por um longo período, e aquelas que, como Roma, constituíram-se “através de caminhos difíceis e por vezes obscuros”, que nos levam a refletir sobre a importância dos legisladores e das leis.

Contudo, ao explorar um texto que sugeria que a reflexão estaria destinada à análise das repúblicas bem constituídas, Maquiavel volta-se para Florença, tomada como exemplo de cidade que tentou ao longo de sua história corrigir os rumos tortuoso de sua constituição. Em seguida irá expor o ciclo das transformações das constituições, “ou, se preferirmos uma noção moderna, a expor sua teoria a história.” Neste ponto, Maquiavel assimila em parte a teoria de Políbio, apresentada em passagem anterior.

Do próprio autor entabulando classicamente o problema: “Para descrever as formas que assumiu o governo de Roma, e o conjunto de circunstâncias que o levaram à perfeição, lembrarei (como os que escreveram a respeito da organização dos Estados) que há três espécies de governo: o monárquico, o aristocrático e o popular; os que pretendem estabelecer a ordem numa cidade devem escolher, dentre estas três espécies, a que melhor convém a seus objetivos.” Daí para a aproximação com o enfoque de Políbio, sinteticamente: “Outros, menos esclarecidos, e seguindo a opinião geral, acham que há seis forma de governo, das quais três são essencialmente más; as três outras são em si boas, mas degeneram tão facilmente que podem também tornar-se perigosas. Os bons governos são os que relacionei anteriormente; os maus, suas derivações. E se parecem tanto aos primeiros, aos quais correspondem, que podem facilmente ser confundidos com eles." Apertando mais o foco de sustentação polibiana, conclui: “Deste modo, a monarquia se transforma em despotismo; a aristocracia, em oligarquia; e a democracia em permissividade. Em conseqüência, todo legislador que adota para o Estado que vai fundar uma destas três formas de governo, não a mantém por muito tempo; não há o que a possa impedir de precipitar-se no tipo contrário, tal a semelhança entre a forma boa e a má.” Do que inferirá com propriedade a favor da forma mista de governo: “Este é o círculo seguido por todos os Estados que já existiram, e pelos que existem. Mas raramente se retorna ao ponto exato de partida, pois nenhum império tem resistência suficiente para sofrer várias vezes as mesmas vicissitudes. Acontece muitas vezes que, no meio destes distúrbios, uma república, privada de conselhos e de força, é tomada por algum Estado vizinho, governado com mais sabedoria. Se isto não ocorrer, um império percorrerá por muito tempo o círculo das mesmas revoluções (mutazioni). Para mim, todas estas formas de governo são igualmente desvantajosas: as três primeiras, porque não podem durar; as três outras, pelo princípio de corrupção que contêm. Por isto, todos os legisladores conhecidos pela sua sabedoria evitaram empregar exclusivamente qualquer uma delas, reconhecendo o vício de cada uma. Escolheram sempre um sistema de governo de que participavam todas, por julgá-lo mais sólido e estável: se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente.”

Da pressuposição de que só as instituições primeiras, no momento mesmo da fundação, “determinam a essência de uma república”, Maquiavel passa ao caso romano, em que as dificuldades primordiais têm relevância, pois se cidades com instituições defeituosas de início, não conseguem operar as transformações necessárias, outras existem, como Roma, que conseguiram remodelar-se até o limite da perfeição, para além de todas as adversidades. Para Santonastaso, o único polo utópico na obra de Maquiavel é o reconhecimento da perfeição da república romana.

A república tida como perfeita, a mista, que assegura plenamente a liberdade e mantém a luta entre as classes sociais em tensão constante, pode resultar do processo interno de transformação de suas instituições. Para a qual concorreriam “instituições não muito distantes das de uma verdadeira república”, como quer Bignotto. O que seria possível de acordo com Maquiavel, porque mesmo vivendo sob uma monarquia, “Rômulo e todos os demais reis promulgaram numerosas outras leis, excelentes para um governo livre.” Porém, alguns intérpretes quiseram --forçando a mão-- deduzir daí que a liberdade para Maquiavel associava-se à monarquia, outros preferiram esperar pelo desenvolvimento dos seus ‘discursos’ até identificar o pleno exercício da liberdade com o regime da república mista somente. Se é na república mista que haveria uma institucionalização da liberdade, porém ela pode existir em potência sob qualquer forma institucional. O próprio Maquiavel fornece o modelo: a monarquia romana. Contudo, Roma pode ser tomada como exemplar não porque tenha tido uma fundação perfeita, mas sobremaneira por ter tido habilidade política bastante para operar as difíceis, necessárias e oportunas transformações políticas.

Aproveitando a deixa de Savonarola acerca da natureza humana, --entre outros, pois tanto autores latinos quanto cristãos, como Santo Agostinho, enquadraram desfavoravelmente a natureza humana--, enquanto responsável pelo fato dos florentinos fracassarem na restauração da paz civil, Maquiavel objetivando dar um caráter universal a seu discurso, recorre ao tema da “maldade natural dos homens”, deixando de lado as abordagens dos humanistas para o tema. Aliás, tal tema é recorrente em várias passagens, em quase todos os textos do pensador florentino. Tendo como pano de fundo as relações entre o povo e os nobres romanos, após a expulsão dos Tarquínio, sob o temor de sua volta, Maquiavel assentou: “Como demonstram todos os que escreveram sobre política, bem como numerosos exemplos históricos, é necessário que quem estabelece a forma de um Estado, e promulga as suas leis, parta do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião. Se esta malvadez se oculta durante um certo tempo, isso se deve a alguma causa desconhecida, que a experiência ainda não desvelou; mas o tempo --conhecido justamente como o pai da verdade-- vai manifestá-la.”

Num rasgo de estoicismo a romana, Maquiavel arremata que “a fome e a pobreza fazem os homens industriosos, e as leis os fazem bons.” Resta saber como é possível combinar a questão da correção humana pelas leis com o problema da maldade natural dos homens? A resposta possível é que as leis ocupam o lugar dos Tarquínio, pois por natureza também os homens temem a morte, o que os faz desejar algo para além dos interesses pessoais mais imediatos. Assim, Roma seria o melhor modelo político, pois soube transformar o medo na melhor oportunidade de criação de uma sociedade política superior --a república, plena de liberdade, com leis fortes e instituições capazes da manutenção dos distúrbios entre Senado e povo --como quer o capítulo 4. Porém, Florença que teve nos Medici os seus Tarquínios não teve que se livrar das famílias dominantes, ligadas àquela família, operando na realidade um regime oligárquico. Se Florença considerava, em geral, os embates internos a causa de sua desgraça, e, este seria um dos poucos itens em que todos concordavam. Maquiavel tomará o rumo oposto e declarará que a desunião entre Senado e povo é que transformou Roma numa república livre e em expansão constante. Mais, contrariando os que criam que a virtude e força romanas advinham de sua boa milícia e da buona fortuna, o florentino assegura que o sucesso romano tinha sua fonte na buona ordine, as boas leis, calcadas no desenvolvimento das discórdias entre o Senado e o povo, porque os tumultos, os levantes, as sedições internas, foram a causa primeira da liberdade em Roma.

Enxergar os conflitos internos das cidades, como um fator negativo para a política, estendia-se por toda tradição política italiana, do “trecento” e do “quattrocento”. Ao posicionar-se em favor das “discórdias civis”, Maquiavel redimensiona o problema da liberdade cívica, pois para ele a liberdade deve ser pensada tomando em conta os conflitos internos das cidades e as “intrínsecas inimizades”. Acrescente-se a isto o fato de que as leis e as instituições deveriam ser revistas. A propósito Maquiavel escreveu: “Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens que quase todos condenam irrefletidamente. De fato, se se examinar com atenção o modo como tais desordens terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o exílio, ou violências prejudiciais ao bem público, mas que, ao contrário, fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos. (...) E concluiu: o desejo que sentem os povos de ser livres raramente prejudica a liberdade, porque nasce da opressão ou do temor de ser oprimidos.” A liberdade maquiaveliana é o resultado de um processo de luta, que não é extinto pelas forças do tempo nem ao menos pelas forças humanas. As discórdias, núcleo central da existência desejos polarizados na cidade, engendram as maiores e melhores instituições civis, pois como quer o pensador florentino, existem “em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem dessa desunião...”

Assim, a maldade natural dos homens não passa, certamente, de diferença de opiniões... Se as duas forças em luta na cidade, o povo e os nobres, que buscam fins diferençados entre si, o resultado iniludível é “que a liberdade não é um meio termo estático que satisfaz os desejos dos dois oponentes. Tal fim é absolutamente impossível de ser alcançado por dois adversários que têm o mesmo objetivo. A liberdade, mais do que uma solução permanente para as lutas internas de uma cidade, é o signo de sua capacidade de acolher forças que, não podendo ser satisfeitas, não deixam de buscar meios de se exprimir.”

Maquiavel elogia a pletora de vida da sociedade tumultuária, plena de levantes espontâneos ou previsíveis, que por inexistir a possibilidade de sua extinção, garante sempre a possibilidade da liberdade, que é o resultado dos conflitos em andamento.

Se o subsolo destas últimas colocações remetem o leitor diretamente para o capítulo 4 dos Discorsi, porém, é preciso considerar que no capítulo 37, Maquiavel reconhecerá que os distúrbios de Roma, ao tempo da promulgação da lei agrária, de valor retroativo, fizeram a cidade perder a liberdade. Deste exemplo, se conclui que as leis devem ser capazes de esconjurar os ódios nascidos das lutas políticas, canalizando os conflitos para os mecanismo institucionais, de modo oportuno e adequado. Maquiavel reconhecerá: “Assim se originou e findou a lei agrária; e se o que digo aqui sobre os seus efeitos parece contradizer o que demonstrei alhures (que a inimizade entre o povo e o Senado de Roma contribuiu para manter sua liberdade), direi que não é assim. A ambição dos poderosos é tal que se num Estado se procura esmagá-la sem piedade, por todos os meios e modos, ela o arrastará na sua queda. Se bem seja verdade que a lei agrária quis escravizar Roma durante três séculos, a cidade se teria perdido antes se o povo, por meio dessa lei e de outras reivindicações, não houvesse conseguido refrear a ambição dos nobres.” E ao relembrar a fragilidade da maior e melhor república, Maquiavel força o estudo da situação de Florença tomando em conta as mesmas possibilidades. Como inexiste qualquer idealização da república romana, nem elogios aos conflitos a qualquer custo, como conseqüência a paz e a estabilidade não podem ser vistas como o objetivo último da ação política, como queriam os humanistas. Assim, o universo da política aparece sob os olhos de Maquiavel sob constantes tensão e mutação.

Contudo, o núcleo central de todo o enfoque acerca da liberdade parece encontrar-se, sobremaneira, nos capítulos 16, 17 e 18, do Livro Primeiro.

No primeiro deles, Maquiavel propõe a seguinte proposição: “Se um povo habituado a viver sob um príncipe ganha acidentalmente a liberdade, tem dificuldade em mantê-la”. Frente a nada hipotética situação, Maquiavel relembra o sucedido em Roma após a expulsão dos Tarquínio, como exemplo salutar. Como quer o florentino, se trata de uma “dificuldade que se deve à seguinte razão: um povo nesta situação é como um animal vigoroso que, embora feroz por natureza, e nascido na floresta, tivesse crescido numa jaula; posto casualmente em liberdade, em pleno campo, não saberia encontrar alimento, nem abrigo, tornando-se presa do primeiro que quisesse outra vez capturá-lo.” E prossegue garantindo que é “o que acontece com um povo acostumado a viver sob leis alheias; não sabendo garantir sua própria defesa, nem defender a coisa pública dos atentados inimigos, cairá logo sob um jugo muitas vezes mais intolerável do que aquele do qual se libertou.”. Mas, isto ocorre quando tal povo encontra-se complemente corrompido, e, conseqüentemente, a liberdade não pode vingar. É o que se dá nas nações em que o correto encaminhamento do bem público sobrepõe-se sobre o mal encaminhamento, o Estado acaba por recobrar a liberdade, mas com muita dificuldade, pois encontrará “inimigos engajados” (os que tiravam vantagens da situação anterior) e apoiadores não engajados. Tal se dá porque o Estado fundado na liberdade (por extensão na igualdade, e vice-versa) só reconhece privilégio e dá prestígio aos cidadãos que são merecedores de tal honraria. E o legítimo merecedor não necessariamente deve ser grato.

Além disto, as vantagens da liberdade não são palpáveis ou visíveis a olho nu, quando possuídas. Como para Maquiavel não há gratuidade em política, “ninguém jamais confessará gratuitamente que é devedor de quem não o agride”. Neste ponto, ele bate pesado para não deixar dúvidas acerca da dificuldade de instaurar (restaurar) a liberdade num Estado, argumentando: por isto, “todo novo governo que seja livre terá como inimigos pessoas engajadas. Para remediar esta dificuldade, e as desordens que provoca, não há meio mais poderoso, mais eficaz e necessário do que matar os filhos de Brutus (os quais, como a história nos ensina, só não foram arrastados com outros jovens romanos a conspirar contra a pátria porque não podiam mais prevalecer-se, sob os cônsules, de um poder ilegítimo). Ao que concluiu, dramaticamente, justificando o seu argumento, a liberdade do povo era para eles como que uma servidão.”

Se não é possível governar com segurança tendo como inimigos uma multidão, tal só é possível para aquele que tem somente um diminuto número de opositores. Para a primeira situação o governante terá de usar massivamente a força, o que acaba por enfraquecer o poder, quando o mais correto é ganhar-lhes a afeição. Em Il Principe este problema está posto no capítulo XIX, em que discute-se o que é melhor ser amado ou temido (odiado). Se naquele livro Maquiavel toma partido do temor, nos Discorsi o ser (ou fazer-se) amado prepondera. Sendo assim, o governante deve saber o que o povo deseja, por mais perigosa e irresponsável que seja esta enquete. O próprio Maquiavel adianta a resposta: em primeiro lugar o povo quer vingar-se de quem lhe tirou a liberdade; e em segundo, recuperá-la. “Não podendo contentar senão em parte o desejo que têm os povos de recobrar a liberdade perdida, o príncipe deve examinar as causas deste desejo: verá então que um pequeno número deseja a liberdade para poder comandar, mas um número infinitamente maior de cidadãos quer a liberdade apenas para poder viver em segurança.” A primeira bem pode ser satisfeita, porém a liberdade pode, se possível, ser restituída, porém em parte. “Quanto aos primeiros, qualquer que seja a forma como se organize a república, no máximo quarenta ou cinqüenta cidadãos podem alcançar o poder --um número bem reduzido.” Ocorre, secunda o pensador florentino, que sempre haverá poucos exigindo a liberdade “para comandar” e uma infinitude de cidadãos almejando viver em segurança, mesmo que isso implique em ausência de liberdade. Maquiavel, fino psicólogo, parece tentar desatar o nó górdio do problema de reaver a liberdade posto naquela quadra do Livro Primeiro dos Discorsi. De novo, a cantilena realista aponta para o fato de que aqueles poucos podem ser mortos ou satisfeitos com honrarias, enquanto os segundos exigem leis e instituições que assegurem a existência pacífica em segurança. Frente este dilema, o governante deve convencer plenamente o povo de que não irá violar as novas leis, daí talvez o costume (simbólico) de jurar sobre um exemplar da constituição e das Sagradas Escrituras. Resta saber quem modela quem, se o governante modela o povo, ou se, republicanamente, o povo modela o governante à sua imagem e semelhança? O retorno sisífico a Roma, fornece uma pista para a solução da dificuldade. Somente o povo não corrompido absolutamente pode desejar que a liberdade seja recobrada. Roma e o povo romano só recobraram a liberdade depois da morte (simbólica ou não) dos filhos de Brutus e da expulsão dos Tarquínio, e sua consolidação foi possível, porque o povo ainda não estava corrompido. Em outras palavras, cortou-se pela raiz a corrupção dos governantes, na hora azada, antes que pudesse ter chegado até o povo. Situação que mais tarde, ao tempo dos Graco, não será possível ser contida, e Roma perderá sua liberdade, como lamentam Tito Lívio e Maquiavel.

Como quer Bignotto, esse “percurso sinuoso, que vai da problemática da fundação, passando pelas críticas à Igreja, até a afirmação da corrupção como empecilho maior para a vivência da liberdade, desfere um golpe mortal nos humanistas, que viam na liberdade um bem adorado por todos. Maquiavel destrói o mito florentino da liberdade mostrando que, ao contrário do que acreditavam os escritores do passado, a liberdade é sempre objeto de críticas violentas, e de escassa defesa da parte daqueles que por ela são beneficiados. Isso explica porque os legisladores são obrigados a atemorizar os homens para solidificar sua obra, por que a conservação de uma república implica uma ação contínua na cidade.”

A resposta aos dilemas e proposituras desse capítulo transfiguram-se no posterior: “Um povo corrompido que recobra a liberdade só com grande dificuldade poderá manter-se livre.” Maquiavel traz dilematicamente o assunto para os domínios exemplares da história romana. “A meu juízo, ou Roma deixaria de ter reis ou necessariamente recairia, em pouco tempo, numa tal fraqueza que passaria a ser um Estado sem importância. Se considerarmos o grau de corrupção a que tinham chegado seus monarcas, veremos que teria sido impossível remediá-la caso tivesse havido dois ou três outros reinados, e o mal se alastrasse aos membros da coletividade, depois de dominar sua cabeça. Mas, como esta foi decepada quando o tronco estava ainda intacto, foi possível manter a ordem e a liberdade.”

Porém, Maquiavel engrossa a voz para afirmar que a cidade corrompida, “que vive sob o domínio de um príncipe, não recobrará jamais a liberdade, ainda que o príncipe e sua raça sejam destruídos.” A cidade deverá fatalmente destronar o governante desregrado, passar pelos mais diversos monarcas, até que apareça um outro “mais virtuoso e esclarecido”, que a liberte --benefício este que não se estenderá por mais tempo do que o da vida do libertador.” Logo, será preciso mais de um governante com as qualidades elencadas, que dedique praticamente toda a vida para a reconstrução da liberdade na cidade. Como quer o florentino, hipoteticamente ao menos, não sabe “se já se viu tal prodígio, ou mesmo se ele é possível. Se acontecesse de uma cidade arruinada pela corrupção se recuperar da sua queda, este benefício só poderia ser atribuído à virtude de um homem, e não à vontade geral que o povo pudesse ter em favor de boas instituições. E mal a morte abatesse este reformador, a massa retornaria aos seus antigos costumes.” Na passagem da hipótese mais ou menos inconsistente para evidência, Maquiavel conclui que “com efeito, não há homem cuja vida seja longa o bastante para poder reformar um governo há muito tempo desorganizado; e se tal reforma não for feita por um príncipe longevo, ou durante dois reinados igualmente virtuosos, o Estado tombará necessariamente num abismo do qual só poderá sair às custas de muito esforço e de sangue derramado.” No limite sempre a força imperativa pode resolver a situação quando a habilidade política falha. Mas, a conclusão do capítulo redime o pensamento maquiaveliano ao esclarecer que a “corrupção e a inaptidão para a vida em liberdade provêm da desigualdade que se introduziu no Estado; para nivelar essa desigualdade, é preciso recorrer a meios extraordinários, que poucos homens sabem ou querem usar.” --Meios extraordinários?

“De que maneira se pode manter o governo livre numa cidade corrompida; e como instituí-lo, se ela ainda não o tiver”, com esta interrogativa Maquiavel engastalha o capítulo 18 ao anterior. E garante que as “duas empresas apresentam igual dificuldade; e embora seja quase impossível propor regras fixas sobre este ponto, devido à necessidade de proceder segundo os diferentes graus de corrupção...” Quando o povo se corrompe, as leis e instituições que regulavam o funcionamento da cidade, ao tempo em que os cidadãos eram virtuosos, tornam-se insuficientes. Em geral, as leis são alteradas para melhor adequação a nova situação. Ocorre, registra Maquiavel, que raramente as instituições também são modificadas de acordo com as novas exigências. Duas passagens recorrentes da república romana são ilustrativas. Primeira: “Para melhor me explicar, direi que em Roma havia instituições que regulavam o governo, ou seja, o Estado, e leis que ajudavam os magistrados a refrear as desordens, provocadas pelos cidadãos.

As instituições abrangiam a autoridade do povo, do Senado, dos tribunos, dos cônsules, a maneira de eleger os magistrados, e o processo legislativo. Os fatos pouco mudaram essas instituições. O mesmo não aconteceu, contudo, com as leis que disciplinavam os cidadãos, como as leis sobre o adultério, o luxo, a conspiração e todas as demais que se tornavam necessárias devido à mudança sucessiva dos costumes. Mas, como foram conservadas as instituições que não eram boas, no meio da corrupção geral, as novas leis não bastaram para manter os homens na virtude. Para fazer com que se tornassem inteiramente úteis, teria sido preciso que se mudasse ao mesmo tempo as antigas instituições.”

Segunda: “Dois pontos principais demonstram que as mesmas instituições deixam de ser convenientes a uma cidade corrompida: a criação dos magistrados e o processo legislativo.

O povo romano só concedida o consulado e as outras principais magistraturas da república aos que postulavam. Este princípio era excelente, pois só se candidatavam àquelas funções os cidadãos que se consideravam dignos, já que eram uma vergonha o ser rejeitado. De sorte que, para merecê-las, os cidadãos se esforçavam por praticar o bem.

Mas quando os costumes decaíram, este processo se tornou extremamente pernicioso. As magistraturas passaram a ser postuladas não pelos mais virtuosos, mas pelos mais poderosos; e os cidadãos sem recursos, ainda que dotados de todas as virtudes, não ousavam apresentar-se como candidatos, temendo ser rejeitados.” Como não havia mais consideração pelo valor, ele foi trocado pelo favor, à sombra do poder. “Mais tarde, desceu-se ainda mais, passando-se a nomear os que ostentavam maior poder; de modo que pelo vício das instituições, os homens de bem foram excluídos de todos os cargos.”

Mais adiante Maquiavel recomenda que a “reforma das instituições pode ser feita de dois modos: reformando-se todas elas ao mesmo tempo, quando se reconhece que perderam o valor, ou gradualmente, à medida que se lhes percebe os inconvenientes.” Como as duas formas oferecem dificuldades, a “reforma parcial e sucessiva deve ser provocada por um homem esclarecido que saiba reconhecer de muito longe as dificuldades, logo que surjam.” Mas, como quer o próprio Maquiavel uma dificuldade sempre arrasta seu par, pois para o caso, é “possível que nunca se encontre um homem deste tipo; se surgisse um só, não conseguiria convencer os concidadãos dos vícios identificados pela sua previsão. Quando estão habituados a uma certa maneira de viver, os homens não a querem alterar, sobretudo se não enxergam claramente o mal que se lhes insinua.”

E quanto a reforma total “e imediata da constituição política, quando há convicção geral de que ela é defeituosa, é difícil efetuá-la mesmo se o defeito é evidente, porque para isto os meios ordinários são insuficientes. Torna-se indispensável o recurso a métodos extraordinários --as armas e a violência. Antes de mais nada, o reformador deve apoderar-se do Estado, a fim de poder dele dispor à vontade.” A exceção é a utilização da força, depois de esgotados os recursos da habilidade política.

Num jogo dialético entre bem e mal no universo da ação política, Maquiavel assegura que é “necessário ser um homem de bem para reformar a vida política e as instituições de um Estado; mas a usurpação violenta do poder pressupõe um homem ambicioso e corrupto. Assim, raramente acontecerá que um cidadão virtuoso queira apossar-se do poder por meios ilegítimos, mesmo com as melhores intenções: ou que um homem mau, tendo alcançado o poder, queira fazer o bem, dando boa utilização ao poder que conquistou com o mal.” Como a dizer, que carecem os homens de bem da excessiva ousadia dos canalhas.

Frente a esta situação parece não haver republicanismo que resista absolutamente. E o florentino é forçado a deduzir, após tal demonstração, que “do que acabo de dizer, transparece a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de manter o governo republicano numa cidade corrompida, ou de ali estabelecê-lo. De qualquer maneira, mais vale a monarquia do que o estado popular para assegurar que os indivíduos cuja insolência as leis não podem reprimir sejam subjugados por uma autoridade real.” Conclusão melancólica, mas realista, pois pretender regenerá-la por outro meio seria uma empresa muito penosa, ou absolutamente impossível...

A trilha da liberdade encontrará luz novamente no capítulo 25, em que o jogo aparência-essência sugere a possível (e melhor) solução para a “reforma da antiga constituição de uma cidade livre”. Como quer o florentino, aquele “que pretendendo reformar o governo de um Estado, quiser ver seu projeto apoiado pelo assentimento geral, deve conservar pelo menos a sombra dos antigos costumes, para que o povo não suspeite de uma alteração --mesmo se a nova constituição for inteiramente diversa da antiga." Maquiavel apela então para a universalidade do seu argumento: “Todos os homens se importam com a aparência das coisas, tanto quanto com o que elas realmente são; e (conclui) muitas vezes se interessam mais pelas aparências do que pela realidade.”

O jogo aparência-essência implica em tomar a ação política como representação teatral, se é mesmo verdade que os homens se interessam mais pelas aparências das coisas que pelas coisas em si. Assim, Maquiavel saltando da política para a religião, outra representação teatral, relembra que era celebrado “em Roma um certo sacrifício anual, que só podia ser oficiado pelo rei pessoalmente, para evitar que se lamentasse o não cumprimento do antigo costume pela falta de um rei, foi criado, para presidir a cerimônia, um ‘rei’ simbólico, subordinado ao sumo sacerdote. O povo podia assim assistir ao sacrifício, desaparecendo o pretexto de que o seu interesse significava um desejo de que retornassem os monarcas.” Mesmo que o exemplo proposto esteja ancorado, em princípio, no universo da representação religiosa, a conotação política do fato é inevitável.

Da exposição analítica do capítulo 25, conclui o florentino que é exatamente aquilo “o que devem fazer todos os que querem apagar mesmo os traços mais tênues dos costumes antigos, para substituí-los por novas instituições e um governo livre.”

No jogo da aparência-essência, que é vital para a ação política, toda a astúcia é pouca, pois como “as inovações terminam por transformar inteiramente o espírito dos homens, é preciso que haja um esforço para conservar o mais que se possa a antiga fisionomia do Estado." Destarte, assegura Maquiavel ser essa a ‘receita’ para aquele que pretende instituir um poder soberano --seja republicano ou monárquico. Mas, adverte para o caso daquele que queira fundar uma autoridade absoluta, “que os autores chamam de tirania, pois ele precisará mudar integralmente todas as coisas...” Assim, para o pensador florentino aquele “que conquista o poder soberano sobre uma cidade ou um Estado, não tem meio mais seguro de se manter no trono do que pela renovação, desde o início de seu reinado, de todas as instituições --sobretudo quando o seu poder não tem raízes muito fortes. Deve, por exemplo, instituir novos magistrados com novas denominações; ou dar a riqueza aos pobres, como fez Davi, ao ser coroado... (...) Será preciso também que construa novas cidades, destruindo as antigas; e que faça transportar os habitantes de um lugar para outro. Em poucas palavras, que não deixe coisa alguma intata no novo Estado; que toda situação, autoridade ou riqueza seja devida ao novo soberano.” Esta forma de encarar a tirania, mais objetiva e menos moralista, parece desbancar o ranço medieval acerca da imagem do governante que reforma absolutamente as instituições e leis anteriormente vigentes. Talvez não seja propriamente dessas passagens que Maquiavel recebeu a pecha de pensador maldito. Mas, tal deve derivar mais precisamente de leituras obtusas do capítulo VIII de Il Principe, “Dos que alcançaram o principado pelo crime”, em que personagens políticas como Agátocles de Siracusa e Oliverotto da Fermo, ilustram a cena tirânica, plenos de poder, mas sem glória...

Entretanto, é próprio Maquiavel que, ao final do curto capítulo 26, desaconselha aquelas práticas, tomando-as como bárbaras, “contrárias a civilização’, anticristãs e anti-humanitárias. É que a lembrança de Filipe da Macedônia, zagal imprudente, que ‘passeava os cidadãos, de província para província, como um pastor a conduzir seu rebanho”, desagrada o nosso autor. Porém, parece esquecer que o legislador Clístenes ao promover uma reforma na Grécia, tida e havida como contundentemente racional, propôs a mudança involuntária dos cidadãos de seus territórios de origem para outros mais adequados do ponto de vista da divisão política. Além do que --sob o esforço dos homens do Renascimento, tentando desvencilhar-se do universo ideológico do cristianismo, ao operar a separação entre teologia e filosofia, objetivada na cisão epistemológica entre Deus, homem e natureza--, as figuras de pastor e rebanho mirando a “Cidade de Deus” parecem bastante oportunas.

O capítulo 49, fornece algumas pistas no desembrulhar da questão da liberdade, atrelada à fundação e conservação contínua dos princípios que nortearam tal fundação. A questão proposta dá conta da situação das cidades criadas livres, como Roma, que encontraram dificuldades em promulgar leis que conservassem a liberdade, tanto pior para aquelas, como Florença, que surgiram na servidão. Historiando, Maquiavel assentou: “O rumo e os progressos da república romana provam como é difícil organizar um governo livre, no qual todas as leis tendem à manutenção da liberdade”,pois, “a cada dia o governo reconhecia alguma necessidade nova, que exigia a criação de novas instituições.” Se as cidades criadas livres têm dificuldades em manter a liberdade, “não é de espantar que as cidade que nasceram na servidão sintam a quase impossibilidade de organizar uma constituição que lhes assegure a liberdade e a tranqüilidade.”

Destas, Florença é o melhor exemplo que ocorre a Maquiavel. E neste passo ele embute uma crítica velada às idealizações dos humanistas cívicos. Uma vez que Florença foi originalmente “uma dependência do império romano; acostumada a viver sob um senhor, permaneceu longamente em situação servil, sem se ocupar com sua própria existência. Tendo chegado mais tarde à independência, desenvolveu uma constituição própria; mas as novas instituições misturadas às antigas, que não valiam de nada, não surtiram efeito. Foi assim que, segundo tradição segura, durante duzentos anos a cidade jamais teve um governante que lhe fizesse merecer o nome de república.”

Maquiavel infere do passado histórico-político de Florença que as dificuldades enfrentadas por ela são as mesmas “enfrentadas por todas as cidades, que tiveram a mesma origem. E, embora muitas vezes um pequeno número de cidadãos tenha recebido, por livre escolha do povo, a missão de reformá-la, nunca se fez esta reforma visando ao bem comum, mas sempre ao benefício de um partido; assim em vez de repor a ordem na cidade, só se fez acrescentar à desordem.” Deve-se concluir, que sem as vantagens sempre alegadas por Maquiavel acerca da desordem, como geradora de boas leis, e mantenedora ímpar da chama da liberdade cívica.



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